O papel do farmacêutico na dispensa de canábis medicinal é fundamental, segundo a farmacêutica Ângela Rodrigues, membro do Conselho Consultivo Científico do Observatório Português da Canábis Medicinal. Contudo, alerta que falta conhecimento técnico-científico e formação específica sobre estes medicamentos/substâncias.
Qual é o papel do farmacêutico na dispensa de canábis medicinal?
No contexto atual, marcado por rápidos avanços científicos e tecnológicos, pelo aumento da esperança média de vida e consequente aumento da prevalência de doenças crónicas, bem como pelo significativo envelhecimento populacional, reaviva-se o interesse terapêutico pela canábis medicinal e seus canabinoides. A canábis medicinal tem vindo a tornar-se uma opção terapêutica cada vez mais estudada, reconhecida e regulamentada, sendo utilizada atualmente no tratamento de diversas condições clínicas.
Com a crescente prescrição e a procura por orientações qualificadas sobre o seu uso seguro e eficaz, o farmacêutico desempenha um papel crucial na dispensa da canábis medicinal, pela sua capacidade de intervenção na orientação, aconselhamento e monitorização do utente. Ao fornecer informação clara e precisa, bem como orientação detalhada e personalizada sobre dosagem, via de administração, potenciais interações medicamentosas e efeitos secundários, o farmacêutico pode ajudar o utente a maximizar os benefícios da canábis medicinal, enquanto minimiza os riscos, contribuindo para aumentar a adesão à terapêutica e a consequente melhoria da sua qualidade de vida.
Como um dos alicerces da saúde pública, o farmacêutico está comprometido em garantir a segurança, a eficácia e o bem-estar do utente, promovendo uma colaboração multidisciplinar no seu seguimento, e participação ativa na farmacovigilância, como parceiro fundamental de uma abordagem integrativa da saúde.
Como é feita a avaliação das prescrições médicas e a verificação das doses ou formulações?
A avaliação das prescrições médicas e a verificação das doses ou formulações é feita em conformidade com a legislação portuguesa, sendo um processo técnico executado pelo farmacêutico ou por quem legalmente o substitua, com o fim de garantir a segurança do utente e o uso racional da terapêutica.
Em Portugal, a Lei n.º 33/2018 de 18 de julho – LEI DA CANÁBIS MEDICINAL – estabelece o quadro legal para a utilização de medicamentos, preparações e substâncias à base da planta da canábis para fins medicinais, nomeadamente a sua prescrição exclusivamente médica e mediante receita especial e a sua dispensa exclusiva em farmácia, através de apresentação da receita médica e verificação da identidade do adquirente.
No ato da dispensa, e por se tratar de uma substância controlada, o farmacêutico, deve avaliar se a prescrição médica está de acordo com as regras aplicáveis aos medicamentos psicotrópicos e estupefacientes, nomeadamente, nome e número do utente (ou seu representante legal, no caso de menor ou pessoa incapaz), identificação do médico, identificação pelo nome comercial e composição em THC:CBD do produto à base da planta de canábis, via de administração, forma farmacêutica, posologia, quantidade a dispensar, data de prescrição e indicação clínica autorizada pelo Deliberação Infarmed nº 11/CD/2019.
O farmacêutico deve ainda verificar se a dose prescrita está dentro dos limites de segurança terapêuticos, tendo em consideração o perfil do utente e se a formulação é adequada à indicação clínica e à via de administração recomendada. Se necessário, deve entrar em contato com o médico prescritor para esclarecimentos.
Como player essencial na cadeia de valor destes medicamentos/substâncias, o farmacêutico tem o dever e a responsabilidade de promover uma orientação detalhada, alertando sobre possíveis efeitos secundários esperados e potenciais interações medicamentosas, assim como a disponibilização ao utente de todas as instruções necessárias à correta utilização do produto.
“Apesar de o enquadramento legal estar definido, existem várias dificuldades práticas no cumprimento das normas de prescrição e dispensa da canábis medicinal em Portugal”
Como avalia o atual enquadramento legal da canábis medicinal em Portugal?
O enquadramento legal da canábis medicinal em Portugal é robusto e bem estruturado, apesar de recente: apresenta um quadro legal específico – Lei n.º 33/2018, de 18 de Julho de 2018 (Lei da Canábis Medicinal), Decreto‑Lei n.º 8/2019, de 15 de Janeiro de 2019, Deliberação nº 11/CD/2019, de 31 de janeiro de 2019 e Portaria nº 83/2021, de 15 de abril – uma autoridade reguladora inequívoca – INFARMED, I.P., orientações de prescrição e dispensa claramente definidas e uma cadeia de produção regulada, sujeita a normas de boas práticas agrícolas (GACP), boas páticas de fabrico (GMP) e boas práticas de distribuição (GDP). Contudo, encontra-se ainda em fase de consolidação pelos desafios que apresenta.
O acesso a estes medicamentos/substâncias é limitado quer pela baixa diversidade de produtos com ACM ou AIM, quer pelo condicionamento das indicações terapêuticas. A sustentabilidade económica, com elevados custos para o utente e ausência de comparticipação, condiciona um acesso equitativo. A investigação científica e evidência clínica para algumas indicações permanece reduzida, o que limita a confiança dos profissionais de saúde e do próprio sistema para uma prescrição mais ampla.
Apesar de, atualmente, Portugal ser o segundo maior exportador mundial de canábis medicinal, suplantado apenas pelo Canadá, existe um diferencial entre exportação/produção e o mercado interno, uma vez que nem sempre se traduz proporcionalmente numa ampla oferta interna, ou em condições de acesso simplificadas para utentes nacionais. Assim, para tornar o sistema mais eficaz e acessível, é imperiosa a melhoria e evolução em todas estas áreas.
Existem dificuldades práticas no cumprimento das normas de prescrição e dispensa?
Apesar de o enquadramento legal estar definido, existem várias dificuldades práticas no cumprimento das normas de prescrição e dispensa da canábis medicinal em Portugal. Para o médico, um dos principais obstáculos centra-se na prescrição restritiva e pouco operacionalizada, quer pelas limitações das indicações terapêuticas (o que exige justificação clínica e desencoraja muitos prescritores), quer pela ausência de protocolos clínicos nacionais com guidelines práticas, o que pode promover abordagens desiguais.
No que diz respeito à dispensa, o farmacêutico depara-se atualmente com um contexto complexo. A falta de conhecimento técnico-científico e formação específica sobre estes medicamentos/substâncias, com a reduzida experiência operacional e consequente receio e desconhecimento das normas, bem como uma exigente verificação documental e de controlo, além da reduzida disponibilidade destes produtos pelos armazenistas, conduz a uma insegurança profissional, com risco de erro pela ausência de procedimentos uniformizados e integração eletrónica, onde o receio de responsabilidade legal se expressa pela incerteza quanto a deveres profissionais, traduzindo-se em desmotivação para disponibilizar a dispensa, a orientação e o aconselhamento ao utente.
Desta forma, o farmacêutico deveria ser um player ativo nesta nova abordagem terapêutica, mas, perante a realidade atual, o mesmo permanece numa posição passiva atuando com cautela excessiva, insegurança técnica e risco de incumprimento por falta de condições práticas e desconhecimento regulamentar, afastando-se de um domínio terapêutico onde poderia e deveria ter um papel relevante.
Tendo em consideração o atual desafio da falta de formação específica/informação aos diferentes profissionais de saúde envolvidos em toda a cadeia destes medicamentos/substâncias, urge planear e definir um caminho que contribua para o aumento do conhecimento técnico científico e literacia. É premente a necessidade de capacitar os farmacêuticos e as farmácias, sobre esta nova alternativa terapêutica, como agentes transformadores para a melhoria do bem-estar e segurança dos utentes.
Considera que a legislação é suficientemente clara quanto ao papel das farmácias?
Atendendo a que o Decreto-Lei n.º 307/2007 continua a ser o quadro-base que regula o regime jurídico das farmácias de oficina, e que apesar de ter existido um considerável avanço no alargamento das atividades realizadas na farmácia, particularmente durante a pandemia – realização de testes rápidos de antigénio ou participação nas campanhas de vacinação – que vieram demonstrar valor para a saúde pública, muitas destas alterações foram reguladas por instrumentos pontuais e medidas temporárias como portarias, normas e acordos, existindo assim lacunas evidentes.
Esses atuais hiatos reportam à prescrição pelo farmacêutico e seu âmbito clínico com clarificação de limites e competências, com consequente conflito entre profissões e insegurança jurídica sobre a autonomia e limites da ação farmacêutica sem intervenção médica, remuneração sustentável e integração formal com o SNS para que a sustentabilidade dos serviços não dependa de decisões políticas temporárias, regulação explícita para telefarmácia, e-commerce e entrega ao domicílio, interoperabilidade digital e acessos a dados clínicos para não condicionar segurança clínica e qualidade do serviço.
Regras uniformes de formação/responsabilidade, uma vez que a extensão de competências clínicas exige requisitos percetíveis de formação contínua, processos de acreditação e definição de responsabilidades/seguro profissional e um planeamento da rede de farmácias e critérios de localização versus sustentabilidade, que apesar de ter sido objeto de revisões – o Decreto-Lei n.º 128/2023 clarificou alguns critérios – permanece com evidente tensão entre garantir acessibilidade nas zonas rurais e a sustentabilidade económica das farmácias. Deve, assim, assumir-se como prioridade legislativa transformar todas essas medidas pontuais e temporárias num quadro legal estruturado e estável.
Fonte: Saúde Online
Autor: Ângela Rodrigues
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