“Os medicamentos à base de canábis deveriam ser comparticipados pelo Estado”

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Tanto em termos de comparticipação pelo Estado como de prescrição pela comunidade médica, “os medicamentos à base de canábis deveriam ser tratados como todos os outros fármacos”, aponta João Taborda da Gama, advogado e docente que esteve presente na 1ª Conferência Nacional de Canábis Medicinal, organizada pelo Observatório Português de Canábis Medicinal e a Faculdade de Medicina de Coimbra. A conferência debateu a utilização de substâncias à base de canábis na epilepsia, dor crónica, cuidados paliativos e saúde mental.

Portugal exporta cada vez mais canábis para outros países. Só em 2021, foram exportadas quase 30 toneladas de flor seca de canábis, o que representa um aumento de quase 600% face ao ano anterior. O número de empresas que operam no sector também é crescente. Até ao momento, porém, apenas um fármaco à base desta planta foi aprovado para venda em Portugal — tem um custo de cerca de 150 euros e não é comparticipado pelo Estado.

A questão foi levantada por João Taborda da Gama, advogado da área do direito das substâncias controladas e docente da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, numa conferência sobre canábis medicinal organizada pelo OPCM em parceria com a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, realizada este sábado.

“Acho que [estes fármacos] deveriam ser comparticipáveis como qualquer medicamento. Se temos um produto que foi aprovado e que ainda por cima tem um uso limitado e de última linha, só podendo ser utilizado para doenças graves, não compreendo que haja esta diferença relativamente aos outros fármacos”, sublinha João Taborda da Gama. Em declarações ao Expresso, explica que a distinção é feita por se considerar, em termos de regulamentação, que a canábis “não é um medicamento igual aos outros”. “É enquadrada numa categoria própria que não é elegível para ser comparticipada.”

Cabe às empresas solicitar ao Infarmed que as substâncias produzidas sejam comparticipadas pelo Estado — até “porque a lei não diz expressamente que não pode haver comparticipação”, diz João Taborda da Gama, referindo-se à lei aprovada em 2018 sobre a legalização do uso de canábis para fins medicinais em Portugal.

A regulamentação estabelece que o cultivo, fabrico e comércio de canábis para fins medicinais só pode ser feito depois de autorização do Infarmed (que deve ser atualizada todos os anos) e estabelece ainda que os produtos à base de plantas de canábis só podem ser vendidos através de prescrição médica.

CUSTOS DE COLOCAÇÃO DE PRODUTOS NO MERCADO SÃO “MUITO ALTOS”

Das 19 empresas que, em novembro de 2021, estavam autorizadas a cultivar canábis (os números foram cedidos na altura ao Expresso pelo Infarmed), apenas uma tem um produto à venda no mercado português. A substância produzida pela empresa multinacional canadiana Tilray, com instalações em Cantanhede, no distrito de Coimbra, foi aprovada em fevereiro do ano passado. A grande maioria destas empresas só tem licenças de cultivo.

João Taborda da Gama, que na sua intervenção na conferência em Coimbra sublinhou que se assiste a uma “revolução” em Portugal devido ao aparecimento de fármacos à base de canábis e substâncias psicadélicas, explica que é assim por razões financeiras. “Os custos envolvidos na colocação no mercado de substâncias à base de canábis são muito altos. E os processos de colocação no mercado são muito exigentes e demorados, exigindo um grande investimento por parte das empresas, para defesa da segurança dos pacientes.” Além disso, “ainda ninguém sabe dizer muito bem qual é o tamanho real do mercado português”, uma vez que a lei é muito recente.

Além do número reduzido de fármacos à base de canábis disponíveis para venda em Portugal, também a lista de doenças em que podem ser utilizadas o único fármaco que existe não é propriamente longa. Dela constam situações de náuseas ou vómitos resultantes de quimioterapia, dor crónica provada por doença oncológica, glaucoma (doença ocular crónica e progressiva), estimulação do apetite em cuidados paliativos de doentes que foram submetidos a tratamentos oncológicos ou com SIDA, síndrome de Gilles de la Tourette, espasticidade associada à esclerose múltipla e casos de epilepsias graves em crianças provocados pelos síndromes de Dravet e Lennox-Gastaut Ao todo, são sete as indicações terapêuticas aprovadas pelo Infarmed em 2019.

ALARGAR UTILIZAÇÃO DE FÁRMACOS A OUTRAS DOENÇAS?

A prescrição “off-label”, em que os medicamentos são prescritos com fins diferentes daqueles para os quais foram testados clinicamente e aprovados pelas entidades reguladoras, permitiria alargar essa lista, mas este mecanismo, na prática, está vedado no caso da canábis, explica João Taborda da Gama.

“A canábis é uma planta, não é patenteável. As empresas não têm incentivos suficientes para fazer estudos clínicos como se faz para os medicamentos, que dão origem ao exclusivo de uma patente.” Por ser encarada dessa forma, a lei previu que o Infarmed listasse as indicações consideradas apropriadas e os médicos têm de indicar a doença ou complicação de saúde a que se destina quando emitem prescrições eletrónicas, “o que não acontece com os restantes medicamentos”.

Na prática, tal procedimento impede um uso mais generalizado destes fármacos à base de canábis. A par disso, e porque a legislação acaba por “não ser muito clara”, quem “programou os softwares de prescrição médica eletrónica fez uma interpretação demasiado restritiva da lei — o sistema obriga à indicação da doença para que o processo de prescrição possa avançar”.

Para João Taborda da Gama, a solução é sobretudo técnica. “As entidades públicas e privadas responsáveis por estes softwares devem adaptá-los de modo a que estes fármacos possam ser prescritos para outras doenças.” E defende, mais uma vez, que a canábis medicinal seja tratada como os outros medicamentos. “Se nos outros fármacos se admite que, em certos casos, os médicos prescrevam para outros fins que consideram adequados, deveria acontecer o mesmo na canábis.”

Segundo o advogado e docente, a comunidade médica recorre a este mecanismo de prescrição “entre 20% a 30% das vezes em idosos e crianças.”

CANÁBIS NA DOR E NA SAÚDE MENTAL

Além da legislação sobre a canábis, foi debatida no congresso em Coimbra a utilização de substâncias à base de canábis na epilepsia (Nuno Canas, neurologista no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures), no alívio da dor crónica oncológica (Artur Aguiar, médico no Instituto Português de Oncologia do Porto), nos cuidados paliativos (Marília Dourado, professora na Faculdade de Medicina de Coimbra) e na saúde mental — área esta em que, ao contrário das restantes, “não há evidência de que sejam eficazes no tratamento da doença mental”, embora sejam necessários mais estudos, como afirmou Manuel Pinho Gonçalves, psiquiatra no Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa e um dos oradores do evento.

Sobre a investigação realizada na área das terapêuticas com canabinóides falou Pedro Barata, professor Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade Fernando Pessoa e médico no Centro Hospitalar Universitário do Porto (Hospital de Santo António).


Fonte: Expresso

Jornalista: Helena Bento

Data: 28/03/2022

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