Entrevista da Prof.ª Dra. Marília Dourado à Miligrama Comunicação, aquando da 1.ª Conferência Nacional de Canábis Medicinal – CNCM que se realizou no auditório da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra no dia 26 de março de 2022.
Marília Dourado: “A utilização da Canábis é uma oportunidade de alívio do sofrimento dos doentes”
Coordenadora do Centro de Estudos e Desenvolvimento de Cuidados Continuados e Paliativos (CEDCCP) da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, a professora Marília Dourado antecipa ideias sobre qual o papel da Terapêutica com Canabinoides em Cuidados Paliativos.
É uma das oradoras e organizadora da primeira Conferência Nacional de Canábis Medicinal – CNCM, durante a qual, irá protagonizar uma intervenção sobre ‘Uso da Terapêutica com Canabinoides em Cuidados Paliativos’. Quais as principais ideias que vai apresentar?
Marília Dourado: O que me foi pedido foi que falasse sobre a oportunidade e o interesse da utilização dos canabinoides em cuidados paliativos. Este é um assunto muito velho, mas muito novo, sobretudo, na nossa cultura e na nossa realidade e, o qual ainda, é alvo de muita controvérsia e, acima de tudo, alvo de grande estigma. Penso que é altura de começar a desbravar este terreno, e desmitificá-lo.
Na sua opinião existem muitos mitos associados?
Sim, existem. Há muitos preconceitos associados à utilização da canábis enquanto produto medicinal.
A sua utilização em medicina pode ser válida, desde que, a situação esteja bem identificada e diagnosticada e, desde que, se perceba que de facto pode ser mais uma opção, para o doente, que de modo algum invalida os outros tratamentos. A sua prescrição no seguimento da prescrição e investimento naquelas que são as propostas terapêuticas “clássicas” fundamentadas e alicerçadas na ciência, pode fazer todo o sentido já que o alívio dos sintomas e do sofrimento a eles associado é tudo o que se procura nesta área da medicina, sendo uma obrigação ética.
A nossa intervenção é baseada no conhecimento científico, mas todos conhecemos situações e condições muito específicas em que a resposta deixa de ser aquela que é precisa e urgente para o alívio do sofrimento dos doentes. Eu e outros, como eu, consideramos que a utilização da canábis poderá ser mais uma oferta e mais uma oportunidade de alívio do sofrimento dos doentes e, porque não utilizá-la, desde que adequada e, desde que, volto a repetir, a sua utilização esteja cientificamente validada. É, pois, neste patamar que nos encontramos: É preciso investigar, é preciso produzir conhecimento e, é preciso fundamentar a utilização dos canabinoides em medicina humana na ciência.
Qual o papel da Terapêutica com Canabinoides em Cuidados Paliativos?
A utilização em Cuidados Paliativos tem que ver com o facto de se tratar de situações muito avançadas e de grande sofrimento associado, onde depois de o doente ter progredido em toda a caminhada dos patamares terapêuticos chega-se, muitas vezes, a uma situação em que a resposta deixa de existir. Não há resposta para a dor e outros sintomas como náuseas e vómitos, a anorexia, a caquexia, as perturbações do sono, à agitação, às questões associadas à patologia neurológica, onde utilização destes canabinoides será uma mais-valia. Para a dor apenas e só em circunstâncias muito específicas. No que respeita à doença oncológica que, como se sabe, pode ter associada dor de grande intensidade, na sua máxima expressão de dor total, nesta dor oncológica, se calhar, não é onde os canabinoides terão um maior interesse, terão seguramente em situações muito específicas de dor, mas não necessariamente na dor oncológica. Existem outras patologias, nomeadamente neurológicas, onde a utilização de canabinoides se revelará uma mais-valia, com maior importância, do que, na dor oncológica.
É, no seu entender, necessário um novo paradigma, um novo olhar?
Sim, sem dúvida. Estamos na altura de avançar e progredir e, de trazer, sensibilizar a classe médica e farmacêutica que, eu acho, que são as grandes profissões que têm de unir-se e trabalhar para se chegar a resultados e evidências seguras quanto ao uso (ou não), para que haja segurança na prescrição e administração do produto aos doentes.
Como avalia a realização desta que será a primeira conferência nacional? Ainda se nota e é real muita resistência quanto à utilização destes produtos, com prejuízo de muitos doentes que poderiam beneficiar da sua utilização, porque, de facto, estão em fim de linha ou porque a situação de que padecem responde a este produto melhor do que responde a outros que são utilizados. Há, contudo, ainda resistência, ou por preconceito, como eu disse, ou pelos mitos associados. Por exemplo, quando se fala da utilização destes produtos, que estão aprovados pelo Infarmed, diz-se que “o doente consome canábis”. Veja-se o peso que isto transporta para o uso médico de um produto que pode ser a resposta única e última ao sofrimento do doente! Ninguém diz que o doente consome corticosteroides… Temos de formar os profissionais, investir na investigação científica, intervir na sociedade promovendo a literacia. Cada vez mais há doentes que procuram bem como famílias que indagam os seus médicos que querem saber mais sobre estas terapêuticas.
Fonte: Miligrama Comunicação em Saúde