Em Portugal há nove preparações aprovadas pelo Infarmed mas nenhuma é comparticipada. E os seguros também não cobrem essa despesa, ao contrário do que acontece nalguns países da Europa, aponta o Observatório Português de Canábis Medicinal.
Não é difícil fazer as contas: se um terço da população sofre de dor crónica, e se muitas vezes os medicamentos convencionais falham em dar resposta, estima-se que o número de doentes que encontra na canábis medicinal uma solução será ainda representativo. Problema: estes produtos (preparações que estão à venda nas farmácias sob receita médica) são caros e há muitas pessoas que descontinuam o tratamento por não terem condições para os pagar.
Em Portugal existem nove preparações de canábis medicinal e nenhuma delas é comparticipada. Não é muito diferente do que acontece na Europa com uma nuance importante: em países como a Chéquia ou a Alemanha, os seguros de saúde oferecem este tipo de cobertura. Na Chéquia, os pacientes são reembolsados em 90% através de seguradoras de saúde, indica a plataforma Cannabis Europa.
Por forma a conseguir que a comparticipação do Estado em Portugal, o Observatório Português de Canábis Medicinal está a fazer um levantamento dos doentes que beneficiam destas preparações. Mas a questão principal é outra: conseguir que esta medicação deixe de ser a última linha. A presidente Carla Dias explica à SÁBADO o que está em causa.
O que se entende por canábis medicinal e qual é a diferença entre os medicamentos e as preparações?
Canábis medicinal é aquela que está de acordo com a lei portuguesa, que foi aprovada em 2019 – e que diz que toda e qualquer preparação à base da planta canábis tem de ser devidamente aprovada pelo Infarmed. Uma das formas de essa aprovação acontecer é através da Autorização de Introdução no Mercado (AIM), que existe para os medicamentos. E medicamentos em Portugal existem poucos: o Sativex, que já está introduzido no mercado, e o Epidiolex. O primeiro é para a esclerose múltipla, para a espasticidade essencialmente; o segundo é para a epilepsia.
Algum deles é comparticipado?
Só o Sativex. Mas o Epidiolex é dispensado em farmácia hospitalar, não está disponível nas farmácias comunitárias. E carece da autorização do Infarmed. Outra forma de aprovação é a Autorização de Colocação no Mercado (ACM), onde entram as preparações e substâncias à base da planta canábis, que não requerem ensaios clínicos e podem ser submetidas por uma empresa que esteja licenciada em Portugal. Há nove preparações aprovadas pelo Infarmed e que estão à venda neste momento nas farmácias portuguesas comunitárias.
E os produtos com CBD que são vendidos em lojas?
Tudo o que mencionei só pode ser adquirido com prescrição médica e daí que tenha a designação de canábis medicinal aprovada pela lei portuguesa. Aquilo que se encontra em lojas e em parafarmácias e que se consegue comprar sem receita médica não é canábis medicinal. São produtos que contêm algum teor de canabidiol, mas que não têm quantidade suficiente para necessitar de aprovação pelo Infarmed.
Esses produtos até podem ter quantidade suficiente para produzir efeitos, mas é impossível saber porque não passam pelo controlo da autoridade do medicamento. Se tiverem determinada quantidade de CBD, por exemplo 10%, não podem ser vendidos em loja. É uma quantidade que já é considerada terapêutica. Um dos produtos que se encontra é o óleo de sementes de cânhamo, por exemplo. Trata-se de um óleo alimentar que serve para temperar comida, não para tratar doenças. Tem muito ómega 3, tem algum composto da canábis, mas que está presente nas sementes – e as sementes não têm quantidade terapêutica. As pessoas confundem muito isso.
As preparações vendidas em farmácia têm de ter avaliação médica, o médico tem de avaliar se o doente pode ou não tomar estas preparações ou substâncias.
Têm ideia de quantos doentes fazem canábis medicinal em Portugal?
Nós estamos a fazer um levantamento mas ainda não tenho esse número. Os médicos do nosso conselho científico estão a recolher esses dados nas várias especialidades. Não tenho ainda ideia de números mas são muitos. Em Portugal, um terço da população sofre de dores crónicas. Portanto, estas novas preparações que estão à venda, estes nove de que falei, dão para aliviar os sintomas da dor crónica com várias origens.
De que doenças?
No cancro está mais virado para os paliativos, para aliviar a sintomatologia dos doentes. Até então as únicas preparações que existiam eram para serem vaporizadas e agora, como já temos extratos, em que a via de administração é oral, já dá para estes doentes. Estas preparações contêm canabidiol e tetra-hidrocanabinol, o chamado THC. Os dois juntos fazem o alívio dessas dores contínuas que as pessoas têm.
Além da Oncologia, temos pessoas com dor crónica muito ligada, por exemplo, à coluna, as dores musculares e de coluna. Temos pessoas com fibromialgia, dores localizadas derivado de acidente ou mesmo de um problema crónico a nível reumatológico. Temos algumas pessoas que tomam por causa da espasticidade associada à esclerose múltipla, não para a doença mas para aliviar esses sintomas. Além disso, e embora não seja uma indicação do Infarmed, temos muitas pessoas a tomar para controlo da ansiedade – e com muitas melhorias.
Temos também a epilepsia, as mais variadas formas de epilepsia, para controlar o sono e a pessoa estar mais calma. E situações de autismo, há muitas crianças com autismo que tomam para a sintomatologia – como acontece na ansiedade. Para comtrolar, por exemplo, as questões comportamentais.
As preparações vendidas em farmácia rondam que preços em média?
Temos dois tipos diferentes de preparações. Aquelas que são a flor, que é para ser vaporizada, tem um custo acrescido porque os doentes têm que comprar o vaporizador – que anda à volta dos 300 euros. A preparação em si custa 150 euros. Se tomar 1 grama por dia dá para 15 dias. Depende da patologia e da posologia que é dada pelo médico para a toma. Depois, as soluções orais de CBD só, isolado; e temos o CBD com THC em várias proporções. Rondam os 90 euros o frasco.
São medicações caras.
É mais caro do que aquilo que se compra na internet mas têm outras vantagens. O que se compra online não sabemos o que está lá dentro, não sabemos se tem qualidade e segurança para ser administrado a uma criança e também não tem acompanhamento médico. Isso é muito importante, principalmente quando estamos a falar de crianças, é muito importante para os pais.
O Observatório tem defendido a comparticipação destes produtos, qual é a vossa proposta?
Que seja comparticipado pelo menos como é o Sativex. Não é muito, mas 37% já é melhor que nada. Mas enquanto não for um medicamento de primeira e segunda linha, nunca vai ser comparticipado com uma percentagem mais elevada. Esta é que é a questão. Porque continua a ser de terceira linha, depois de todos já terem sido tentados. Isso está na lei. E por isso tem de haver também uma mudança na lei. Mas se conseguíssemos esses 37% já era uma grande ajuda.

O que é que acontece na Europa?
Nalguns países da Europa, os seguros de saúde cobrem. Aqui os seguros não têm essa cobertura porque estes preparados são sempre de terceira linha, não é essencial.
Recebem muitos relatos de doentes que deixam de fazer a terapia porque não conseguem pagar?
Sim, há muitos doentes que interrompem o tratamento porque é muito caro. Vão racionando e acabam por deixar de tomar e voltam aos convencionais – que deixaram de ser solução, ou nunca foram solução. Muitos deles não têm outra opção. Mas as pessoas deixam de adquirir porque é muito caro. Compram as primeiras vezes, veem que resulta mas não têm como continuar.
Qual foi a história que mais a impressionou?
A de um doente que tem muitas complicações associadas: tem uma doença rara com dor crónica. E também teve um acidente – que piorou muito as dores crónicas em todo o corpo. Por vezes, tem crises reumatológicas que o impedem de escrever. Tem muita rigidez nos músculos. Ele sente-se muito aliviado quando faz uma das preparações, mas anda sempre a ver se consegue ter dinheiro para a comprar.
Até foi muito difícil no início conseguir que lhe receitassem a preparação. Eu própria ajudei o médico a prescrever pela primeira vez. Os nossos médicos já deviam ter formação para o fazer mas, como ninguém a faz, nós fizemos um bocadinho esse papel. No arranque foi difícil, esse doente foi complicado.
Autor: Lucilia Galha
Fonte: Sábado