Carla Dias, Presidente do Observatório Português de Canábis Medicinal (OPCM), aborda a importância da canábis medicinal no tratamento de determinadas patologias. Em entrevista ao SaúdeOnline, alerta, também, para a necessidade da comparticipação deste tratamento para se evitar, sobretudo, o recurso ao mercado ilegal.
Como surgiu a ideia de criar o Observatório?
O OPCM foi constituído a 22 de abril de 2019, após a aprovação da lei, no ano anterior, que estabeleceu o quadro legal para a utilização de medicamentos, preparações e substâncias à base da planta da canábis para fins medicinais, nomeadamente a sua prescrição e a sua dispensa em farmácia. Na altura percebeu-se que para que a lei saísse do papel era preciso a força dos doentes, nomeadamente através de uma associação. Desde então, mantemos o objetivo de fazer chegar a canábis medicinal aos doentes portugueses que podem beneficiar desta terapêutica, tendo em conta, obviamente, o que está previsto pelo Infarmed.
Para já, está aprovada em casos de espasticidade associada à esclerose múltipla ou lesões da espinal medula; náuseas, vómitos (resultante da quimioterapia, radioterapia e terapia combinada de HIV e medicação para hepatite C); estimulação do apetite nos cuidados paliativos de doentes sujeitos a tratamentos oncológicos ou com SIDA; dor crónica (associada a doenças oncológicas ou ao sistema nervoso, como dor neuropática causada por lesão de um nervo, dor do membro fantasma, nevralgia do trigémio ou após herpes zóster); síndrome de Gilles de la Tourette; epilepsia e tratamento de transtornos convulsivos graves na infância, tais como as síndromes de Dravet e Lennox-Gastaut; e glaucoma resistente à terapêutica.
Também existem outras patologias que poderão beneficiar da canábis medicinal e o Observatório procura sensibilizar para esses casos.
Qual o impacto desta terapêutica na vida dos doentes?
De acordo com a lei, a canábis medicinal apenas pode ser prescrita em 3.ª linha. No caso particular da dor crónica, por exemplo, é a única solução para muitos doentes, que viveram anos sem qualidade de vida. Ter acesso a este tipo de medicação foi uma mudança significativa.
“Ainda existe a ideia errada de que se trata apenas de uma planta, todavia, é uma planta com princípios ativos”
Continua-se a comprar canábis para fins terapêuticos na internet?
Há, de facto, casos de pessoas que já experimentaram a canábis medicinal e que não querem sequer iniciar outras terapêuticas. Isto acontece, sobretudo, por considerarem que é um produto mais natural… As pessoas devem sempre optar pela via legal. Obviamente, não sendo comparticipado, tem um custo… E, quando a pessoa está desesperada, por não ter acesso ao médico ou porque o clínico não quer prescrever este tipo de tratamento, recorre-se à via ilegal, através da internet ou do autocultivo. As pessoas não devem ir por estes meios, porque o produto não é controlado, não é de todo medicinal, faz-se automedicação, podem existir interações mais ou menos graves com outros medicamentos… Ainda existe a ideia errada de que se trata apenas de uma planta, todavia, é uma planta com princípios ativos. Isto é problemático, porque não há qualquer tipo de vigilância e de segurança.
“A OPCM tem apostado, desde o início, na formação científica de médicos e de outros profissionais, organizando, anualmente, uma conferência em parceria com a Universidade de Coimbra”
A comparticipação pelo Estado poderia minimizar estas situações?
Sim, a comparticipação é sempre o melhor caminho, quer do ponto de vista financeiro quer da segurança. No entanto, mesmo sem este apoio do Estado, convém que se tenha noção de que a via ilegal não fica muito mais barata. Por exemplo, o primeiro medicamento aprovado tem um custo de cerca de 10-15 euros/grama. Este é o mais ou menos o mesmo valor que se paga no mercado ilegal. Mesmo que seja 3 ou 4 euros mais caro na farmácia, tem-se a garantia de que é seguro e fiável. No mercado ilegal não se consegue saber se se cumprem as quantidades adequadas de THC (ou de CBD), o que pode ter consequências para a saúde das pessoas. Mesmo que a curto prazo se consiga um alívio dos sintomas, desconhece-se o impacto desses produtos a longo prazo. O risco é ainda maior nos casos de polimedicação, por causa das interações medicamentosas.
O OPCM tem parceria com vários profissionais de saúde. Sente que ainda existe alguma resistência, nomeadamente por parte dos médicos, em receitar este tipo de tratamento?
Desde 2019, procurámos falar com os profissionais de saúde. E, ao longo deste tempo, notamos um maior interesse no tema, o que, inevitavelmente, também foi impulsionado pela aprovação de produtos vendidos na farmácia. A OPCM tem apostado, desde o início, na formação científica de médicos e de outros profissionais, organizando, anualmente, uma conferência em parceria com a Universidade de Coimbra, além disso contamos sempre com o apoio do conselho consultivo científico do OPCM, que integra diferentes profissionais de saúde.
____________________________________________________________________________
Autora: Maria João Garcia
Fonte: Saúde Online
Artigo Original: Link