Imagem: © Amin Chaar / Global Imagens
Mais de dois anos após aprovação da lei da canábis medicinal, esta ainda não chegou às farmácias. O Infarmed tem pelo menos três pedidos de colocação no mercado em apreciação – o mais recente desde outubro de 2019. Uma das multinacionais envolvidas já saiu do país. Mas uma empresa portuguesa crê que vai ter o seu produto nas farmácias no início de 2021.
“Espero no primeiro trimestre de 2021 colocar produtos no mercado português.”
A afirmação é de Sofia Ferreira, da empresa Sabores Púrpura, que tem desde janeiro de 2019 autorização para cultivar canábis e a produz na zona de Tavira, estando a preparar-se para o fazer também em Beja.
Mas antes que os seus produtos estejam disponíveis no mercado português conta começar a exportá-los para vários países – “Estamos a pedir a autorização de exportação ao Infarmed. Temos pedidos bastante grandes e dos quatro cantos do mundo, porque existe uma lista de cultivadores autorizados de narcóticos e nós estamos nela.” A Alemanha, onde a lei que aprova a canábis medicinal tem só menos um ano que a portuguesa (foi aprovada em março de 2017) mas há muito os pacientes podem, mediante receita médica, ter acesso aos produtos da planta nas farmácias – em 2018, houve mais de 185 mil prescrições de canábis medicinal no país -, será o destino preferencial de exportação. “Na Alemanha é diferente”, explica. “A flor de canábis é vendida diretamente às farmácias, que fazem a manipulação e a dosagem. Cá as farmácias não se mostraram, até agora, interessadas nisso.”
O otimismo da empresária, que gere a Sabores Púrpura, sediada em Coimbra, com o marido, Miguel Pereira da Silva, e começou por produzir morangos para o mercado internacional antes de se dedicar à canábis, é baseado não só naquilo que qualifica como “uma muito boa ideia da atuação do Infarmed, que nos tem sempre respondido atempadamente”, como no facto de este ter 90 dias para apreciar as Autorizações de Colocação no Mercado (ACM). Mas pode ser infundado: o regulador do medicamento tem pelo menos três ACM de produtos de canábis, apresentadas por empresas multinacionais, por aprovar – e a mais recente, da canadiana Tilray, que produz canábis em Cantanhede, faz um ano em outubro.
Que tipo de produto foi exatamente submetido pela Tilray para aprovação do Infarmed nessa ACM não foi possível esclarecer junto da empresa (nem do Infarmed, que até à publicação deste texto não respondeu às perguntas do jornal sobre quantos pedidos de ACM e para que tipo de produto tem em análise e desde quando), a qual se limita, em resposta ao DN; a referi-lo como “uma preparação à base da planta da canábis para fins medicinais.” Outros dois pedidos de ACM foram submetidos por outra multinacional de origem canadiana, a Aurora Cannabis. Uma delas, conseguiu o DN saber, era de flores secas de canábis (marijuana), e o processo foi emperrado pelo problema da dosagem.
“O Infarmed está a atrasar o processo”
“A Aurora foi a primeira empresa a pedir uma ACM, em abril de 2019. Teve um processo de perguntas e respostas que dura até agora. As questões eram pertinentes e prendiam-se com a questão da dosagem, que é realmente complexa no que respeita às flores.”
Quem esclarece é Raul Neves, que representou a empresa em Portugal e está agora no processo de encerrar a mesma no país, já que esta “desistiu”. “A Aurora tinha um projeto de construir uma unidade de produção e transformação no Barreiro. O objetivo era produzir para o mercado medicinal e a fábrica estava pronta a iniciar laboração. Mas como em Portugal os produtos são licenciados como produto final, a responsabilidade da dosagem é do fabricante [ao contrário, como já referido, do que sucede na Alemanha]. E o regulador, que está muito habituado a funcionar com comprimidos, tem exigências para as preparações de canábis às quais estas empresas multinacionais não estão dispostas, porque implicam processos muito longos e não estão interessadas em fazer produtos específicos para mercados tão pequenos.” Por alguma razão, conclui, “mais nenhuma das outras grandes empresas internacionais, alem da Tilray, está a pedir ACM.”
Não terá sido só o atraso no processo de obtenção de ACM, porém, a determinar a saída da Aurora de Portugal: “As grandes empresas como a Aurora e equivalentes tiveram planos de expansão muito agressivos na sua capacidade de produção e agora iniciaram processos de reestruturação. A Aurora fechou cinco fábricas no Canadá e no contexto europeu concentrou a produção numa fábrica dinamarquesa.”
Por sua vez Steven George, o responsável da Tilray em Portugal, limita-se a confirmar o facto de ainda não haver aprovação, recusando comentar: “Andamos para a frente e para trás com perguntas e respostas. Como country manager, um dos meus objetivos é obviamente colocar produto no mercado e atender às necessidades dos pacientes.”
Pelos pacientes fala Carla Dias, do Observatório de Canábis Medicinal, e mãe de uma menina que sofre de convulsões epiléticas por ter sido vítima de Fires aos 10 meses (acrónimo de Febrile infection-related epilepsy syndrome, uma encefalopatia epilética que pode surgir em crianças e adolescentes após uma febre aparentemente normal), a quem ministra desde 2018 óleo de canabidiol, ou CBD, um derivado da canábis sem características psicotrópicas, sob a forma de suplemento alimentar (é o único tipo de produto a que tem acesso) para as controlar: “Acho muito francamente que o Infarmed está a atrasar o processo. Fizeram-nos acreditar que o problema residia nas empresas, que elas é que se tinham de chegar à frente e pedir Autorizações de Colocação no Mercado e que não estavam a fazê-lo. Mas afinal os pedidos estão lá há que tempos à espera de aprovação porque estão a fazer exigências várias de especificidades que não são condição por exemplo na Alemanha. Ou na Polónia, onde o processo legal começou ao mesmo tempo que o nosso e já há produto nas farmácias.”
“Alguém está a ganhar muito dinheiro”
Apesar do que diz Raul Neves, a presidente do Observatório considera que as exigências do Infarmed foram a principal razão pela qual a Aurora abandonou Porttugal. “Era uma grande empresa que estava interessada no mercado português e por entraves que foram colocados saiu do país. Enquanto isto, doentes que podiam beneficiar dos produtos produzidos por esta e outras empresas veem-se obrigados a recorrer a suplementos alimentares e até ao mercado negro para a flor de canábis. Há médicos do SNS a dizer aos seus pacientes oncológicos, por exemplo, que compram no mercado negro para controlar os efeitos secundários da quimioterapia. Isto faz algum sentido?“
Sofia Ferreira assume uma posição conciliatória: “Há muitas circunstâncias que têm de ser consideradas para produzir medicamentos. A ACM para a canábis vai passar pelos trâmites todos de introdução no mercado para medicamentos.”
O facto de ela e o marido se terem dedicado à produção de canábis por motivos pessoais será determinante para a cautela. “O nosso filho mais novo, que tem agora seis anos, começou a ter convulsões ainda bebé e percebemos a dada altura que o canabidiol (CBD), um derivado da canábis, tem indicações para conter as convulsões mas que não havia nenhum produto disponível no mercado com segurança, só suplementos alimentares. Então mandámos testar para presença de pesticidas os produtos de óleo de CBD que existem no mercado e percebemos que não são seguros. Tenho muito receio em relação à qualidade dos produtos que estão no mercado.” Por esse motivo, admite, nunca deram até hoje óleo de CBD à criança (este é vendido por exemplo nas farmácias alemãs, mas para o comprar é precisa uma prescrição de um clínico daquele país), tendo decidido ser eles próprios a produzir, reformulando a empresa. “Apesar de termos muita pressão do mercado do norte da Europa porque o nosso morango, que ia todo para exportação, era mesmo muito bom, deixámos de o produzir completamente porque não conseguíamos conduzir dois barcos. Agora trabalhamos mesmo só com canábis.”
Com hectare e meio de produção em Tavira e planos “para muitos mais, faseadamente, em Beja”, a Sabores Púrpura, que usa métodos biológicos, conta poder colocar no mercado português frascos de óleo de CBD, com requisitos medicinais, a 20 euros – quando no momento os suplementos alimentares de óleo de CBD estão a ser vendidos a preços proibitivos. “Por um frasco com miligramas, que a mim me custa 15 euros, estão a pedir 150 e 200 euros. Alguém está a ganhar muito dinheiro com isto. A mim interessa-me colocar à venda o mais barato possível, porque se vender ao mundo inteiro por 20 euros tenho margem e vendo muito mais que se vender a meia dúzia por 150.”
“Achamos muito difícil colocar flor de canábis no mercado português”
Acresce que, prossegue, “tudo o que está à venda neste momento em Portugal como derivado de canábis, nomeadamente óleo de CBD, é ilegal.” Como o DN já noticiou, têm sido efetuadas detenções por esse motivo, o que a médio prazo, garante Sofia, implicará que “as pessoas que estão a consumir os suplementos alimentares vão deixar de ter acesso a eles. Até porque a ONU está prestes a reclassificar o CBD como não narcótico – ainda está na tabela de narcóticos. E saindo da tabela de narcóticos não passa a ser suplemento alimentar: é medicamento. E a partir desse momento corre-se o risco de deixar de haver CBD como suplemento alimentar e não haver CBD como medicamento na quantidade necessária para as necessidades do mercado. A própria ONU já percebeu que vai haver esse problema. É um nó muito difícil de desatar.”
Os seus produtos, admite, poderiam estar disponíveis há mais tempo no mercado nacional se não tivesse havido um contratempo de monta no início do processo. “Temos autorização desde janeiro de 2019 – pedimo-la ainda no âmbito da legislação anterior, de 1993, que já permitia cultivar narcóticos para produzir medicamentos – como se passa por exemplo com a palha de ópio produzida no país para fabricar morfina – e comprámos plantas standartizadas no Canadá, a uma universidade. Mas a autoridade do medicamento canadiana, a Health Canada, correspondente ao nosso Infarmed, não permitiu a exportação.”
Porquê Sofia não sabe. Mas o facto não só implicou perder o valor do investimento – “Não nos devolveram o dinheiro, e isso podia ter-nos posto fora do mercado” – como um grande atraso em relação às expectativas. “Perdemos um ano. Tivemos de comprar sementes e começar o processo do início, fazer a padronização das plantas cá.”
Para tal, explica, tem de haver três gerações de plantas, cada uma delas demorando três a quatro meses meses. Isto sucede porque “as sementes não dão todas plantas iguais. Então temos de, para padronização com vista à produção de produtos farmacêuticos, trabalhar com clones: selecionamos os melhores exemplares, fazemos análises desses exemplares e depois fazermos clones deles.” Assim, só em agosto tiveram a primeira colheita comercial de flores. “Estamos já no processo de manipulação, quer para a produção de flores secas, quer de óleos.”
A manufaturação ocorrem em instalações recentemente criadas em Lisboa, cidade a partir da qual se dará a distribuição também. Mas Sofia confessa que a empresa não tenciona pedir ao Infarmed uma ACM para as flores; apenas para óleos e cápsulas. Porque, lá está, “o Infarmed exige que haja indicação de dose de flores e é difícil. Achamos muito difícil colocar uma flor no mercado que seja como um comprimido – é difícil garantir que tenho x miligramas.”
Se todas as empresas tiverem esta perspetiva, nunca haverá flor de canábis legal à venda em Portugal – e os pacientes que dela precisam, e cuja necessidade foi reconhecida através da lei de 2018 e pelo próprio Infarmed ao listar as situações em que a flor de canábis pode ser objeto de prescrição médica, terão de continuar a abastecer-se no mercado do tráfico ilegal, enquanto várias empresas usam o país para produzir legalmente esse mesmo produto para o mercado internacional, incluindo o europeu.
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Fonte: Diário de Notícias
Jornalista: Fernanda Câncio
Artigo original: https://www.dn.pt/pais/2021-canabis-medicinal-finalmente-nas-farmacias-12760489.html